quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A CRUEL INTERPRETAÇÃO DO COMPORTAMENTO


Interpretar é, certamente, das artes e mais difícil. Das iniciativas, a mais arrojada. Dos desejos, o mais explosivo. Das buscas, a mais escorregadia. Entretanto, muito pouco do que se faz na vida se faz sem a ajuda (ou desajuda) da interpretação.
Nenhum educador tem que ser implacável quando se propõe a ensinar ao que não sabe ou corrigir ao que aprendeu de forma distorcida. Desaprender é mais difícil do que aprender um novo comportamento. É mais doloroso desarraigar o que se incorporou de maneira inadequada do que construir o caminho novo do aprender, e a aprendizagem é um novo aprender em que educador e educando se unem para efetuar uma transformação mútua em busca de algo maior.
Uns são frágeis, porque estão no começo; outros são insensíveis, por que começaram mal. Uns e outros muito pouco conquistarão se não forem alcançados pela ternura pedagógica que implica um ato de amor. (texto extraído do livro A coragem de conviver de Luiz Schettini Filho).

sexta-feira, 30 de março de 2007

IGUALDADE

Igualdade

Que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo?
Nada. Nenhum animal depende de seu semelhante. Tendo porém o homem recebido o raio da Divindade que se chama razão, qual foi o resultado? Haver escravos em quase toda a terra.
Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto é, se em toda parte os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima apropriado à sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o globo de frutos salutares. Não fosse veículo de doenças e morte o ar que contribui para a existência humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito além do dos gansos e capros monteses, não teriam os Gengis Cãs e Tamerlões vassalos sendo os próprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxilia-los na velhice.
No estado natural de que gozam os quadrúpedes aves e répteis, tão feliz como eles seriam o homem, e a dominação, quimera, absurdo em que ninguém pensaria: para que servidores se não tivésseis necessidade de nenhum serviço?
Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo de bofes tirânicos e braços impacientes por submeter seu vizinho menos forte que ele, a coisa seria impossível: antes que o opressor tivesse tomado suas medidas o oprimido estaria a cem léguas de distâncias.
Todos os homens seriam necessariamente iguais, se não tivessem precisões. A miséria que avassala a nossa espécie subordina o homem ao homem. O Verdadeiro mal não é a desigualdade: é a dependência. Pouco importa chamar-se tal homem Sua Alteza, tal outro Sua santidade. Duro porém é servir um ao outro.
Uma família numerosa cultivou um bom terreno. Duas famílias vizinhas têm campos ingratos e rebeldes: impõe-se-lhes servir ou eliminar a família opulenta. Uma das duas famílias indigentes vai oferecer seus braços à rica para ter pão. A outra vai ataca-la e é derrotada. A família servente é fonte de criados e operários. A família subjugada é fonte de escravos.
Impossível neste mundo miserável, que a sociedade humana não seja dividida em duas classes, uma de opressores, outra de oprimido. Essas duas classes se subdividem em mil outras, essas outras em sem conta de nomes diferentes.
Nem todos os oprimidos são absolutamente desgraçados. A maior parte nasce nesse estado, e o trabalho contínuo impede-os de sentir toda a miséria da própria situação. Quando a sentem, porém, são guerras, como a do partido popular contra o partido do senado em Roma, as dos camponeses na Alemanha, Inglaterra, França. Mais cedo ou mais tarde todas essas guerras desfecham com a submissão do povo, porque os poderosos têm dinheiro e o dinheiro tudo pode no Estado. Digo no Estado, porque o mesmo não se dá de nação para nação. A nação que melhor se servir do ferro sempre subjugara a que, embora mais rica, tiver menos coragem.
Todo homem nasce com forte inclinação para o domínio, para riqueza, prazeres e sobretudo para indolência. Todo homem, portanto quereria estar de posse do dinheiro e das mulheres ou das filhas dos outros, ser-lhes senhor, sujeitá-los a todos os seus caprichos e nada fazer, ou pelo menos só fazer coisas muitos agradáveis. Vedes que com estas excelentes disposições é tão difícil aos homens ser iguais quanto a dois pregadores ou professores de teologia não se invejarem.
Tal como é impossível o gênero humano substituir, a menos que haja infinidade de homens úteis que nada possuam. Porque, claro é que um homem satisfeito não deixará sua terra para vir lavrar a vossa. E se tiverdes necessidade de um par de sapatos, não será um referendário que vo-lo fará. Igualdade é pois a coisa mais natural e ao mesmo tempo a mais quimérica.
Como se excedem em tudo que deles dependa, os homens exageram essa desigualdade. Pretendeu-se em muitos países proibir aos cidadãos sair do lugar em que ventura os fizera nascer. O sentido dessa lei é visivelmente: Este país é tão um e tão mal governado que vedamos a todo o indivíduo dele sair, por temor que todos o desertem. Fazei melhor: infundir em todos os vossos súditos o desejo de permanecer em vosso Estado, e aos estrangeiros o desejo de para aí vir.
Nos íntimos refolhos do coração, todo homem tem direito de crer-se de todo ponto igual aos outros homens. Daí não segue dever o cozinheiro de um cardeal ordenar a seu senhor que lhe faça o jantar; pode todavia dizer: “Sou tão homem como meu amo; nasci como ele, chorando; como eu, ele morrerá nas mesma angústias e com as mesma cerimônias. Temos ambos as mesma funções animais...
Um homem que não seja cozinheiro de cardeal nem ocupe nenhum cargo no Estado; um particular que nada tenha de seu mas a quem repugne o ser em toda parte recebido com ar de proteção ou desprezo; um homem que veja que muitos monsignori não têm mais ciência, nem mais espírito, nem mais virtude que ele, e que se enfade de esperar em suas antecâmaras, que partido deve tomar? O da morte.
VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. Coleção obra-prima de cada autor. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 295-297

quinta-feira, 29 de março de 2007

IGUALDADE


Igualdade

Que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo?
Nada. Nenhum animal depende de seu semelhante. Tendo porém, o homem recebido o raio da Divindade que se chama razão, qual foi o resultado? Haver escravos em quase toda a terra.

Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto é, se em toda parte os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima apropriado à sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o globo de frutos salutares. Não fosse veículo de doenças e morte o ar que contribui para a existência humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito além do dos gansos e capros monteses, não teriam os Gengis Cãs e Tamerlões vassalos sendo os próprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxilia-los na velhice.

No estado natural de que gozam os quadrúpedes aves e répteis, tão feliz como eles seriam o homem, e a dominação, quimera, absurdo em que ninguém pensaria: para que servidores se não tivésseis necessidade de nenhum serviço?

Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo de bofes tirânicos e braços impacientes por submeter seu vizinho menos forte que ele, a coisa seria impossível: antes que o opressor tivesse tomado suas medidas o oprimido estaria a cem léguas de distâncias.
Todos os homens seriam necessariamente iguais, se não tivessem precisões. A miséria que avassala a nossa espécie subordina o homem ao homem. O Verdadeiro mal não é a desigualdade: é a dependência. Pouco importa chamar-se tal homem Sua Alteza, tal outro Sua santidade. Duro porém é servir um ao outro.

Uma família numerosa cultivou um bom terreno. Duas famílias vizinhas têm campos ingratos e rebeldes: impõe-se-lhes servir ou eliminar a família opulenta. Uma das duas famílias indigentes vai oferecer seus braços à rica para ter pão. A outra vai ataca-la e é derrotada. A família servente é fonte de criados e operários. A família subjugada é fonte de escravos.
Impossível neste mundo miserável, que a sociedade humana não seja dividida em duas classes, uma de opressores, outra de oprimido. Essas duas classes se subdividem em mil outras, essas outras em sem conta de nomes diferentes.

Nem todos os oprimidos são absolutamente desgraçados. A maior parte nasce nesse estado, e o trabalho contínuo impede-os de sentir toda a miséria da própria situação. Quando a sentem, porém, são guerras, como a do partido popular contra o partido do senado em Roma, as dos camponeses na Alemanha, Inglaterra, França. Mais cedo ou mais tarde todas essas guerras desfecham com a submissão do povo, porque os poderosos têm dinheiro e o dinheiro tudo pode no Estado. Digo no Estado, porque o mesmo não se dá de nação para nação. A nação que melhor se servir do ferro sempre subjugara a que, embora mais rica, tiver menos coragem.


Todo homem nasce com forte inclinação para o domínio, para riqueza, prazeres e sobretudo para indolência. Todo homem, portanto quereria estar de posse do dinheiro e das mulheres ou das filhas dos outros, ser-lhes senhor, sujeitá-los a todos os seus caprichos e nada fazer, ou pelo menos só fazer coisas muitos agradáveis. Vedes que com estas excelentes disposições é tão difícil aos homens ser iguais quanto a dois pregadores ou professores de teologia não se invejarem.
Tal como é impossível o gênero humano substituir, a menos que haja infinidade de homens úteis que nada possuam. Porque, claro é que um homem satisfeito não deixará sua terra para vir lavrar a vossa. E se tiverdes necessidade de um par de sapatos, não será um referendário que vo-lo fará. Igualdade é pois a coisa mais natural e ao mesmo tempo a mais quimérica.


Como se excedem em tudo que deles dependa, os homens exageram essa desigualdade. Pretendeu-se em muitos países proibir aos cidadãos sair do lugar em que ventura os fizera nascer. O sentido dessa lei é visivelmente: Este país é tão um e tão mal governado que vedamos a todo o indivíduo dele sair, por temor que todos o desertem. Fazei melhor: infundir em todos os vossos súditos o desejo de permanecer em vosso Estado, e aos estrangeiros o desejo de para aí vir.

Nos íntimos refolhos do coração, todo homem tem direito de crer-se de todo ponto igual aos outros homens. Daí não segue dever o cozinheiro de um cardeal ordenar a seu senhor que lhe faça o jantar; pode todavia dizer: “Sou tão homem como meu amo; nasci como ele, chorando; como eu, ele morrerá nas mesma angústias e com as mesma cerimônias. Temos ambos as mesma funções animais...

Um homem que não seja cozinheiro de cardeal nem ocupe nenhum cargo no Estado; um particular que nada tenha de seu mas a quem repugne o ser em toda parte recebido com ar de proteção ou desprezo; um homem que veja que muitos monsignori não têm mais ciência, nem mais espírito, nem mais virtude que ele, e que se enfade de esperar em suas antecâmaras, que partido deve tomar? O da morte.

VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. Coleção obra-prima de cada autor. Tradução Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 295-297

Edição e Postagem: Professor Robério Andrade

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

ESCRAVOS


Escravos

Em que maneira os proletários diferem dos escravos?
O escravo é vendido uma vez e para tudo; o proletário deve vender-se diário e de hora em hora.
O escravo individual, propriedade de um mestre, é assegurado uma existência, porém miserável pode ser, por causa do interesse do mestre.
O proletário individual, propriedade da classe burguesa inteira que compra seu trabalho somente quando alguém tem a necessidade dela, não tem nenhuma existência segura. Esta existência é assegurada somente à classe ao todo.
O escravo é competição exterior; o proletário está nele e experimenta todos seus caprichos.
O escravo conta como uma coisa, não como um membro da sociedade. Assim, o escravo pode ter uma existência melhor do que o proletário, quando o proletário pertencer a um estágio mais elevado do desenvolvimento social e, ele mesmo, dos carrinhos em um nível social mais elevado do que o escravo.
O escravo livra-se quando, de todas as relações da propriedade confidencial, abolida somente a relação de escravidão e se transforma desse modo um proletário; o proletário pode livrar-se somente abolida a propriedade privada no geral.

EDUCAR PARA O PENSAR

Ponto de vista

Claudio de Moura Castro

Autópsia de um fiasco

Precisamos dissecar cuidadosamente nosso ensino defunto e responder por que nossos alunos não aprendem"

Ofiasco da nossa educa­ção fundamental come­ça a ser percebido. Há cada vez mais brasileiros sa­bendo que tiramos os últimos lugares no Programa Interna­cional de Avaliação de Estudantes (Pisa), uma prova in­ternacional de compreensão de leitura e de outras com­petências vitais em uma economia moderna. Sabem também dos resultados do Sistema Nacional de Avalia­ção da Educação Básica (Saeb), confirmando plenamen­te esse diagnóstico moribundo do ensino. Agora, cabe fazer a autópsia do fracasso, dissecando cui­dadosamen­te o defunto: por que os alunos não aprendem?

Tão retumbante fracasso tem múltiplas causas. Contudo, o presente ensaio assesta suas baterias em uma causa fatal, mas pouco considerada. Vejamos uma constatação surpreendente e assustadora: o Pisa mos­trou que os alu­nos das famílias brasileiras mais ricas entendem menos um texto escrito do que os filhos de operários da Europa e de outros paí­ses com educação séria. Portanto, não é a pobreza dos alunos ou das esco­las que explica o vexame.

Por que nossos alunos não enten­dem um texto escrito? Submeto aqui a hipótese de que reina nos impé­rios pedagógicos e nos autores da moda uma atmosfera que desvaloriza a ta­refa de compreender o que está escri­to no papel. Veja-se a seguinte cita­ção de B. Charlot: "Os saberes cien­tíficos podem ser medidos em falsos e verdadeiros, mas não os conteúdos de filosofia, pedagogia e história... (Fora das ciências naturais) o mun­do do verdadeiro e do falso é do fa­natismo, e não da cidadania".

Ou esta outra, de E. Morin, afirmando que, "em lugar da especialização, da fragmentação de saberes, devemos introduzir o conceito de complexida­de". Critica também "o princípio consolidado da ciência, o de­terminismo - segundo o qual os fenômenos dependem 'diretamente daqueles que os precedem e condi­cionamos os que lhes seguem". Ou ainda a afirmação de D. Lerner, de que "'não faz falta saber ler e escre­ver no sentido convencio­nal... Quem.interpreta o faz em relação ao que sabe... Inter­pretações não dependem exclusivamente do texto em si".

Nesses textos, há asneiras irremediáveis e assunto coroariam um processo de amadurecimento intelec­tual. Contudo, para jovens que iniciam seus estudos, são fórmulas certeiras para uma grande balbúrdia mental, em idade que pede a consolidação de idéias claras e apreensão rigorosa e analítica do texto escrito. Embaçamos o ensino ao solicitar aos alunos que "reinterpretem" o pensamento dos grandes cientistas e filóso­fos, segundo Mortimer Adler, "pedindo sua opinião a respeito de tudo".

Continua correto o conselho de Descartes de dividir o problema em tantas partes quantas sejam necessá­rias para a sua compreensão. De fato, a física de Newton é determinista. Nas melhores escolas, é com ela que se desafia a capacidade de análise dos alunos – inclusive na terra dos autores citados. As ciências sociais adotam outro determinismo, expresso em distribuições de probabilidades. A filosofia requer ainda mais exati­dão no uso da linguagem. Elegância e rigor precisam ser conquistados na língua portuguesa, e as primeiras lições devem ser exercícios de interpretação correta do que está escrito. Ao se enamorarem das idéias turvas acima citadas, nossos professores desviam atenções que deveriam colimar o uso judicioso das palavras e embrenham seus alunos na indisciplina do relativismo, do subjetivismo e da "criatividade".

Wittgenstein foi ao âmago questão ao dizer que "os limites da minha linguagem são também os limites do meu pensamento". Quem não aprendeu a usar palavra não sabe pensar. Para Spinoza, "as desavenças huma­nas são desavenças de palavras".

O grande desafio dos ciclos iniciais de uma educação é entender as relações entre sons, letras e significa­dos, aprendendo a ler, para que se possa passar a ler para aprender. Lembremo-nos da obsessão de George Steiner, sempre em busca do sentido exato que os autores quiseram dar às palavras. Sem isso, o que vem depois é ruído, é o que respondem nossos alunos às questões cuidadosamente formuladas nas provas do Pisa e do Saeb. Esses miasmas intelectuais não oferecem os alicerces para um distanciamento crítico e produtivo do texto original - tarefa que só pode vir mais adiante.

(Revista Veja,de 10. de janeiro de 2007, p. 16)