segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

EDUCAR PARA O PENSAR

Ponto de vista

Claudio de Moura Castro

Autópsia de um fiasco

Precisamos dissecar cuidadosamente nosso ensino defunto e responder por que nossos alunos não aprendem"

Ofiasco da nossa educa­ção fundamental come­ça a ser percebido. Há cada vez mais brasileiros sa­bendo que tiramos os últimos lugares no Programa Interna­cional de Avaliação de Estudantes (Pisa), uma prova in­ternacional de compreensão de leitura e de outras com­petências vitais em uma economia moderna. Sabem também dos resultados do Sistema Nacional de Avalia­ção da Educação Básica (Saeb), confirmando plenamen­te esse diagnóstico moribundo do ensino. Agora, cabe fazer a autópsia do fracasso, dissecando cui­dadosamen­te o defunto: por que os alunos não aprendem?

Tão retumbante fracasso tem múltiplas causas. Contudo, o presente ensaio assesta suas baterias em uma causa fatal, mas pouco considerada. Vejamos uma constatação surpreendente e assustadora: o Pisa mos­trou que os alu­nos das famílias brasileiras mais ricas entendem menos um texto escrito do que os filhos de operários da Europa e de outros paí­ses com educação séria. Portanto, não é a pobreza dos alunos ou das esco­las que explica o vexame.

Por que nossos alunos não enten­dem um texto escrito? Submeto aqui a hipótese de que reina nos impé­rios pedagógicos e nos autores da moda uma atmosfera que desvaloriza a ta­refa de compreender o que está escri­to no papel. Veja-se a seguinte cita­ção de B. Charlot: "Os saberes cien­tíficos podem ser medidos em falsos e verdadeiros, mas não os conteúdos de filosofia, pedagogia e história... (Fora das ciências naturais) o mun­do do verdadeiro e do falso é do fa­natismo, e não da cidadania".

Ou esta outra, de E. Morin, afirmando que, "em lugar da especialização, da fragmentação de saberes, devemos introduzir o conceito de complexida­de". Critica também "o princípio consolidado da ciência, o de­terminismo - segundo o qual os fenômenos dependem 'diretamente daqueles que os precedem e condi­cionamos os que lhes seguem". Ou ainda a afirmação de D. Lerner, de que "'não faz falta saber ler e escre­ver no sentido convencio­nal... Quem.interpreta o faz em relação ao que sabe... Inter­pretações não dependem exclusivamente do texto em si".

Nesses textos, há asneiras irremediáveis e assunto coroariam um processo de amadurecimento intelec­tual. Contudo, para jovens que iniciam seus estudos, são fórmulas certeiras para uma grande balbúrdia mental, em idade que pede a consolidação de idéias claras e apreensão rigorosa e analítica do texto escrito. Embaçamos o ensino ao solicitar aos alunos que "reinterpretem" o pensamento dos grandes cientistas e filóso­fos, segundo Mortimer Adler, "pedindo sua opinião a respeito de tudo".

Continua correto o conselho de Descartes de dividir o problema em tantas partes quantas sejam necessá­rias para a sua compreensão. De fato, a física de Newton é determinista. Nas melhores escolas, é com ela que se desafia a capacidade de análise dos alunos – inclusive na terra dos autores citados. As ciências sociais adotam outro determinismo, expresso em distribuições de probabilidades. A filosofia requer ainda mais exati­dão no uso da linguagem. Elegância e rigor precisam ser conquistados na língua portuguesa, e as primeiras lições devem ser exercícios de interpretação correta do que está escrito. Ao se enamorarem das idéias turvas acima citadas, nossos professores desviam atenções que deveriam colimar o uso judicioso das palavras e embrenham seus alunos na indisciplina do relativismo, do subjetivismo e da "criatividade".

Wittgenstein foi ao âmago questão ao dizer que "os limites da minha linguagem são também os limites do meu pensamento". Quem não aprendeu a usar palavra não sabe pensar. Para Spinoza, "as desavenças huma­nas são desavenças de palavras".

O grande desafio dos ciclos iniciais de uma educação é entender as relações entre sons, letras e significa­dos, aprendendo a ler, para que se possa passar a ler para aprender. Lembremo-nos da obsessão de George Steiner, sempre em busca do sentido exato que os autores quiseram dar às palavras. Sem isso, o que vem depois é ruído, é o que respondem nossos alunos às questões cuidadosamente formuladas nas provas do Pisa e do Saeb. Esses miasmas intelectuais não oferecem os alicerces para um distanciamento crítico e produtivo do texto original - tarefa que só pode vir mais adiante.

(Revista Veja,de 10. de janeiro de 2007, p. 16)

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